Fruta madura

Pode ter sido apenas um delírio febril, sei lá. Absorvido por uma leitura fascinante, vi a madrugada chegar. E, de repente, como que trazidos pela leitura, alguns dos mais notáveis vultos de Piracicaba, ancestrais vieram fazer-me companhia. Então – como se dizia antigamente – me senti bananeira que já deu cacho, caju chupado, figo passado. Quanto mais se aprende, menos se sabe.

Na verdade, a questão é pior, acho que mais grave. O livro, devorado com sofreguidão, remeteu-me a um artigo muito antigo do dr.Jacob Diehl Neto, descrevendo tardes e noites piracicabanas, de saraus, de conversas inteligentes, de arte e cultura naquela Piracicaba de meados do século XX. Então, desconfiei: estou grávido. Um outro livro – que vem atiçando-me a imaginação – já se me plantou na alma, engravidou-me, não dá mais para brincar de virgem tímida, de falsa gravidez. Pois escritor fica mais ou menos emprenhado. Mas é gravidez.

Saí por aí, meus neurônios febris. Personagens desfilavam-me diante dos olhos, no cérebro. Vi um deles, velho operário, na zona do meretrício, à porta da “Pensão Royal”, conversando com Estefânia, com folhetos para ela distribuir às mulheres do prostíbulo. Ainda não me é muito claro como aconteceu, mas aconteceu: Capucho, um estudante, se apaixonara pela amante do coronel, político influente, desses de fazer e exigir censura. Estefânia protegia os amantes, o coronel enlouqueceu. Um folhetinista contava a história, deliciando a cidade. Alucinado e prometendo vingança, o coronel matou Capucho no Bar Jaú, ali onde está, agora, o Bradesco. Pertinho da Nova Aurora e da “bombonnière” do Passarela. Então, tudo aconteceu. Um tiro acelerou a história. Também aqui.

Tentando livrar-me dos fantasmas, telefonei a um amigo. Ele me achou esquisito. Admiti estar. É a náusea. Da gravidez e outras náuseas. Um dos meus fantasmas – na bela linguagem d´antes – me aconselhou, não ouvi: “Coisas há que não valem nem dez réis de mel coado”. E não sei se foi o dr.Jacob ou o dr.Noedy Krahenbuhll, ambos latinistas eméritos, quem me assoprou no ouvido, quando pedi lambarizinho na Rua do Porto: “Aquila non captat muscas”.

Decifrei o que os sábios queriam dizer-me: “Águias não pegam moscas”. Preciso aprender. Em definitivo. Para acreditar em coisas maiores, que esta é cidade de grandezas. Nesse livro de que engravidei, quero narrar parte dessa história com olhos de inventar, escapando ao real para mergulhar nas lendas, nos mitos, no nebuloso, no não contado, nos moinhos de vento. E acreditar no que não se vê. Para – como Fernando Pessoa canta – viver a ventura do guardador de rebanhos, na alegria de, diante da trovoada, acreditar em Santa Bárbara: “Ah! poder crer em Santa Bárbara. (…) Que sabem as flores, as árvores, os rebanhos, de Santa Bárbara?”

Caju chupado, bananeira que já deu cacho, diante do rio, anotei: “Depois da morte de Capucho, Estefânia sai pelas ruas em protesto. É presa. João Chiarini leva os comunistas para fazer barulho à porta da cadeia. Hélio Krähenbühl também. A imprensa, sob censura.” O enredo existe. Falta o narrador. Bom dia.

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