Ignorando um aniversário

imagesPela primeira vez – nestes meus 57 anos de jornalismo – não escrevi sobre o aniversário de Piracicaba. Fi-lo – em todos os anos anteriores – com paixão e emoção. Lembro-me, até hoje, de quando Piracicaba completou 200 anos. Era 1967, um ano já truculento do golpe militar. E todos os festejos de aniversário seriam realizados com celebrações oportunísticas que mais louvavam o governo militarista do que a cidade aniversariante.

Naquela festa do bicentenário, recusei-me a participar. Dirigindo a antiga e saudosa “Folha de Piracicaba”, esperei que todos saíssem e pedi, apenas, que os gráficos me aguardassem, pois faltava completar a primeira página, a comemorativa do aniversário. Era uma noite gélida e chovia. Lembro-me da chuva porque, em meu pequenino canto do jornal pobrezinho, havia goteiras e a chuva pingava num balde a meu lado. Mais do que triste, eu estava amargurado. Mais do que sentir-me sozinho, eu me sentia exilado. Era como se eu estivesse na cela de uma prisão e, do lado de fora, a mulher amada estivesse sendo estuprada sem que eu nada pudesse fazer.

Frio, chuva, solidão, o coração doído, escrevi. E o que era dor se tornou doçura. Devagarinho, mas calidamente, foram-se-me escapando do peito palavras que, para mim, eram uma oração. A crônica se tornou, sem que eu o pretendesse, um poema e o título dizia tudo o que, naquele momento eu sentia, algo que me acompanhou a vida toda: “Acalanto de um caipira apaixonado.” Era meu canto de amor à terra adorada.

Ano após ano, cultivei esse amor. Piracicaba e minha vida se confundiram, como se eu continuasse ainda ligado pelo laço umbilical, laço que nunca foi rompido. Amei Piracicaba como um homem apaixonado ama a mulher querida. Foi, tem sido como se ela não fosse uma cidade, mas uma pessoa. Amei as maravilhas e belezas dela e soube relevar suas feiúras. Nunca consegui afastar-me daqui, embora o tivesse tentado. As palavras do inesquecível dr.Jacob Diehl Neto pareciam acompanhar-me e, delas, fiz um propósito de vida. Ele dizia, repetindo sempre: “Sou como o riacho Itapeva, que nasce aqui e aqui morre.”

Mas o amor por uma cidade é diferente do amor por uma pessoa. Pessoas, amantes – quando preservam o amor – envelhecem juntos. E isso lhes é bom, como que uma bênção. Pois têm lembranças, recordações a trocar, revivendo momentos felizes e infelizes, alegres e tristes, mas alimentados pelo amor que os uniu. Envelheço, amando Piracicaba. Mas ela não envelhece, pois se deixa usar por oportunistas, por aventureiros, por espertalhões que lhe prometem e dão maquilagens que, fingindo renovar a Noiva, apenas a mutilam. Então, olho, vejo, acompanho e me sinto – como naquela noite dos militares – impotente ao ver a violentação da amada. Gritar, protestar, pedir ajuda – nada disso adianta. Lá está ela, violentada, irremediavelmente violentada.

Coincidentemente – neste 2 de agosto – fiz uma reflexão literário, no Correio Popular de Campinas, a respeito da saudade e do saudosismo, do saudoso e do saudosista. O ser humano é um ser saudoso por natureza. Desde quando nasce, leva, consigo, a saudade da calidez e do aconchego do útero materno. Caminha pela vida com essa saudade e com outra e mais outra e mais outra. O homem é a construção de um somatório de saudade. Por isso caminha, sabe porque deve caminhar, para onde ir, um peregrino em busca do seu paraíso perdido. Não quer retornar, quer ir. E é levado pela saudade. O saudosista quer presentificar o passado, fixar-se nele, trazê-lo de volta. E isso é uma doença ou um equívoco mortal.

Sou um humano saudoso. E rendo graças por ter do quê e pelo quê ter saudade. Os brutos não têm do que ou de quem ser saudosos. Eu não sou um bruto. Por isso mesmo, não posso, não devo e nem quero saudar isso em que transformaram Piracicaba. Fizeram, da Noiva formosa e bela, uma deformação. Violentaram-na até roubarem-lhe a identidade. O que é Piracicaba, como é, onde está? É uma outra cidade. Violenta, fria, insensível, egoísta, como uma cidade qualquer destes tempos e espaços materializados. Apenas isso.

Mas não lhe destruíram a alma. E é essa a minha esperança. Pela primeira vez, em 57 anos de jornalismo, portanto, não celebrei o aniversário de Piracicaba. Pois não reconheço esta cidade como a Piracicaba “que adoramos tanto”. Foi-me doído e estranho, pois, lembrando-me do aniversário dela, ignorei-o. Mas entendi o porquê: não posso e nem devo contaminar-me dessas violentações estúpidas e criminosas. Pois o meu dever, minha missão, o final de minha história é o de ser o cantor e o contador da verdadeira Piracicaba que ainda existe, com alma viva, sob esses escombros. Tenho que contar quem ela é em sua verdadeira essência. E não no que os aventureiros a estão transformando. Bom dia.

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