Ir e voltar, ficando

Contei de um pica-pau – não sei se um, se alguns que se iam revezando – que me interrompia com pontualidade quase britânica. Acontecia ao amanhecer e, depois, quando a passarinhada já se recolhia . Não me acostumei com o toc-toc, penso ser alguém rompendo o silêncio, invadindo-me a solidão. Pela manhã, desperto assustado, aborrecido com o intruso. E, à tarde, irrito-me, pensando no atrevido que me invadiu a privacidade. É o pica-pau. Ou um deles.

Houve um beija-flor que me causou reflexões tormentosas. No meu canto de trabalho, alto da casa, quase um sótão, ele aparecia diante da janela, à luz da manhã azulada, pairava no ar como que me espiando. E ia-se embora. Na manhã seguinte, retornava. E assim foi por alguns dias. E me provocou elucubrações que me preocuparam, tão absurdas diante de um mínimo de racionalidade. Haveria algo, passei a pensar, que o beija-flor tinha a me dizer? O fato é que, quando ele deixou de me visitar, senti falta. E me preocupei ainda mais: sumira, por quê?

Digo-as, essas coisas, em respeito a alguns leitores que me escreveram, sensibilizando-me com suas preocupações pelo que, segundo eles, deixei transparecer numa das últimas croniquetas, quando me referi a ir-me, ao irem-se das pessoas. Ora, o que há de mais comum, natural, próprio do ser humano do que esse ir-se? Quando se vai pela vida e na vida, há a possibilidade de voltar, do retorno.

Nos últimos tempos, decidi deixar de ir. E fico plantado. Então, acontece como que uma revelação: fico sem estar. E percebo, então, que estou sem ter ficado. Ora, pode parecer estranho, esquisito. Mas, quanto à minha gente e a todas as outras, já não mais me importa se ficam e estão. E se, estando, ficam. E se, ficando, estão. Vejo sombras. E, de mim, meu mais próximos dizem parecer um sonâmbulo . E tudo porque, muitas vezes chamando-me e não me encontrando, não me buscaram onde estou e fico: ao pé de meu flamboyant. É uma escolha que fiz. Que os acelerados façam as suas. Eu aprendo com aves. Aves avisam.

. Mas nem eu mesmo sabia das raízes, de minhas raízes. Elas aprisionam. São âncoras. Sem elas, afundo, soçobro, desabo, naufrago. Por isso, a elas me agarro. Pois não as criei, não as inventei: nasci delas.

São tempos cruéis. Velhos e idosos sofrem de nostalgias de épocas que conheceram. E moços e adolescentes são nostálgicos dos mesmos tempos, sem tê-los conhecido. Não enxergo, pois, qualquer resposta nova, diferenciada. Mas vejo o princípio, a raiz ainda mantidos. Como o flamboyant, que será flamboyant enquanto tiver raiz de flamboyant. Nesse meu tempo restante, limpo as botinas para montar no lombo de meu pangaré, na corcova de meu raio de luar e sair por aí ao encontro da encruzilhada onde me detive para refletir, pausa para reencontrar a algibeira que enterrei num lugarzinho, à beira de um regato, além, muito além do arco-íris. Naquele lugar, deixei meu pote de mel, minha porção de ouro. Lá, estou eu também.

Dizem-me ser tolice. E me agrado disso. Ora, o que há tão tolo quanto um sorriso de criança? Meus queridos não percebem que – tendo ido e voltado, agora ficando – pretendo ir para além do arco-íris. É perda de tempo tentar enxergar o infinito com pupilas apenas racionais. Racionalizar o encantamento é desencantar. Encantado, terei que ir sozinho. Tendo parado, ficando, vou. E bom dia.

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