Maysa

picture (97)Não sei se feliz ou infelizmente, o fato é que consegui escapar à sedução da tevê como vício. A última novela a que, muito tropegamente, assisti foi aquela em que se buscava saber quem matara a Odete Roitman, não me recordo o nome da história. Inteirinhaa, de cabo a rabo, acompanhei Gabriela, Cravo e Canela, adaptação do romance de Jorge Amado. E por um motivo especialíssimo: fui e ainda sou apaixonado pela obra do grande baiano. Televisão, pois, para mim, tem sido complemento, adição, entretenimento, informação. Duas a três horas por noite são mais do que suficientes e, prazerosamente, vejo meus filmes e noticiários.

Confesso, porém, estar ansioso e inquieto para, pelo menos, ver o primeiro capítulo da minissérie da Globo que se inicia hoje, “Maysa”. Tem que haver algo freudiano na história, pois Jaime Monjardim – não sei por que não assina o nome do pai, Matarazzo – conhece na carne, como filho de Maysa, toda a dramaturgia da vida dela, a moça de imensos olhos azuis que encantou, deslumbrou e assustou o Brasil no final da década de 1950. Quem não se apaixonou por Maysa? Quem não sofreu com ela e por ela?Quem não temeu pela vocação suicida de Maysa, a mulher que cantou a dor, o sofrimento, o abandono, o amor exaltado e amores perdidos?

Manoel Bandeira, um dos mais celebrados poetas brasileiros, falou dos olhos dela, dos olhos de Maysa: “dois oceanos não pacíficos.” A voz rouca de Maysa – como se fosse a rouquidão de soluços contidos – acompanhou a juventude brasileira, como se ela cantasse por nós e refletisse a dor dos amores trágicos daqueles anos. Pois, nos chamados “anos dourados”, o amor era trágico, como se cada paixão extinguisse a vida dos amantes. Maysa, dama da sociedade e casada com um dos mais poderosos herdeiros industriais deste país, viveu a agonia de artista-passarinho, prisioneira em gaiola de ouro. Com um violão, o cigarro, a bebida, encantando os amigos em festas familiares, Maysa surgiu para o mundo com o seu talento e, especialmente, com a sua dor. Quando a alma lhe escapou do corpo, conseguiu cantar para o marido de quem se despedia: ‘Ouça, vá viver a sua vida com outro bem/ Eu já cansei de pra você não ser ninguém…” E falou por milhões de pessoas também mal amadas ou carentes de amor, humilhadas ou simplesmente apáticas diante de casamentos de conveniência. Quando tudo ruiu, Maysa sintetizou: “O meu mundo caiu…”

Maysa foi inspiração de uma juventude que viu as mais profundas transformações pelas quais passou a humanidade em tão pouco tempo no pós-guerra. Maysa foi desabafo. Maysa foi raio caindo no quintal da alma de cada um. Maysa foi relâmpago iluminando trevas. Maysa foi perplexidade. Maysa foi nosso estímulo e, também, nosso medo. Maysa foi a coragem e foi a imprudência. E seu filho, Jayme – uma criança triste quando tudo aconteceu – viveu toda a grande aventura e também a tragédia num canto de sua própria solidão.

Maysa foi estigmatizada pela elite aristocrática de São Paulo, a metrópole provinciana que se fechava em valores apenas cartoriais. Hoje, com mais clareza, podemos sentir que Maysa foi vítima dos preconceitos, da intolerância, vítima também do medo das classes dominantes diante do novo e do rebelde. Fui e ainda sou um dos órfãos de Maysa, talvez um dos viúvos daquela extraordinária mulher, de sensibilidade singular, capaz de refinamentos extraordinários e, ao mesmo tempo, de cair bêbada na calçada. Por isso, fico ansioso à espera do primeiro capítulo da minissérie, como se Jayme Monjardim, o filho, pudesse exorcizar o que houve de sombrio e de nebuloso naquele tempo. Pois Maysa, a nossa amada, foi sombria e nebulosa, a cigarra sofrida que morreu de amar e de cantar. Bom dia.

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