Mundo sem conserto

Mundo espertoNão há, penso eu, como escapar a ideias que se associam. É aquilo que o povo, antes dos filósofos, sabe: “uma coisa puxa a outra.” Bastou-me lembrar, outro dia, de que “praga de pai” pega, eis que outras lições, umas após outras, vieram-me à cachola. Ser avô é ótimo. Para mim, no entanto, apenas na primeira meia-hora. Ter netos a meu lado mais do que esse tempo me leva à beira de um ataque de nervos.

Ora, a vida toda aprendi que avô é “pai com açúcar”. Sei lá se por eu não gostar de coisas doces, ou se é pelo fato de não mais se fazerem netos como antigamente – sei lá a razão, mas, como avô, costumo cansar já no primeiro tempo do jogo. Para mim, a criançada de hoje é muito sem educação, meninada de maus modos. Mas a minha geração colhe o que plantou. Ensinamos os filhos a nos tratarem de “vocês”, que “papai e mamãe são amigos”, deu no que deu: pai e mãe levaram à breca. E – se pai e mãe são apenas amigos – avós tornaram-se petecas e a casa deles virou da mãe-joana. Até aceito seja casa da sogra, mas de mãe-joana não é. Pelo menos a deste avô que aqui vos escreve.

Para complicar ainda mais, acho que netos – pelo menos um tranqueirinha dos meus – confunde avô com pedaço de pau. Explico-me. O pirralho, caramba, desde pequenino pensa que eu sou pau pra toda obra, pau de amarrar égua, pau mandado, pau de amarrar linguiça. Ou que estou um pau a pique, um pau d´alho, pau de arara, pau de virar tripa, pau de fogo, pau de sapateiro. E até pau de Santo Antônio, ainda que eu não saiba o que seja isso. Em suma: ele sempre quis fazer, do avô, gato e sapato. E eu nunca lhe dei tais intimidades, onde já se viu tal abuso?

Veja bem se não tenho razão. Começou há alguns anos passados, quando eram bem pequeninos. Cansei de avisar meus filhos, os pais deles, para impedir a criançada mexesse em tesouros meus: caixinhas, bonequinhos disso e daquilo, biscuits, palhacinhos – brinquedos pessoais, posso? Mal chegavam – percebam o detalhe: o verbo no passado – eles mexiam em tudo, criançada sem educação. Ora, eu sei que a psicologia, já há décadas, ensina a não amedrontar as crianças. Aqui, ó! Se não amedrontar, quem agüenta? Então, chamei meus netos e contei a história universal de que “turco come criança”. Eles arregalaram os olhos. Eu lhes expliquei que sírio, libanês e turco têm os mesmos hábitos alimentares. E lhes assegurei: “Quem mexer nos bonequinhos, eu corto os dedinhos da mão, ponho no forno, asso e como em pedacinho.” Nunca mais ninguém tocou em minhas coleções. Para se ver como sou bom educador.

Pois bem. O garoto sem educação – pensando pudesse aproveitar a ausência dos pais – inventou, sei lá, de imitar um desses monstros de televisão, mostrando os punhos, acho que me desafiando a lutar box. Adverti: “Bateu, levou.” Ele insistiu. Repeti: “Tacô, tomô.” E tive receio de azedar e dar uns bons sopapos no meu descendente, para ele entender: se havia um pau de amarrar égua, esse era o outro avô dele, não eu, ô, papagaio. Lembrei-me, então, do que a criançada de meu tempo ouvia se ousava mostrar o muque aos pais: “Cuidado, que seca a mão.” E alguém engruvinhava os dedos, mostrando o que era “mão seca”. Avisei o meu neto: “Se você fizer isso, sua mão vai secar.”

É, porém, uma criançada que, além de atrevida, não acredita sequer no sobrenatural. Pois o garoto me olhou, mostrou a língua: “Secá o quê, se minha mão num tá molhada?” Ora, qual o futuro, se crianças não têm medo nem de praga de avô, meninada ignorante que sequer conhece um prosaico “ficar de mão seca”? Ameacei mais dramaticamente: “Então, quando eu morrer, volto para puxar sua perna.” Ele chamou as outras crianças: “Venham aqui, o vovô vai brincá de morrê e puxá a nossa perna.”

Agora, tempos depois, a coisa piorou mas não estranho. Pois, já naqueles tempos, eu descobrira ser um mundo sem conserto. Pois é. E bom dia.

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