Na bandeira, mutilaram o Amor
Uma das grandes conquistas do movimento de massas – que ainda agita o País – está, em meu entender, na redescoberta de símbolos nacionais. O Hino e a Bandeira, em especial. Há quem tenha receio de fervores patrióticos. Ou que os menospreze. Muitos se apegam à frase do escritor Samuel Johnson: “Patriotismo é o último refúgio dos canalhas”. É verdade que muitos canalhas se refugiam à sombra do patriotismo, como o fazem, também, em relação à honestidade, à ética, á corrupção. Nos últimos dias, por exemplo, temos visto políticos reconhecidamente corruptos escrevendo até artigos – sem qualquer laivo de vergonha – contra a corrupção na política. São cinicamente canalhas.
Mas, retornando ao patriotismo, este é virtude de um povo que ama seu país, sua pátria, sua gente. Se não houver tal sentimento cívico, a Pátria se transforma em terra de ninguém. Quando se deterioram os valores primordiais representados por símbolos nacionais – a língua, a moeda, a bandeira, o hino, etc – começa a perder-se a identidade da nação. E isso vinha acontecendo gradativamente, desde quando os militares impuseram a ditadura sem povo, tentando impor um fervor cívico que não mais existia. Pois a liberdade – essência da sociedade humana – fôra estrangulada. Foi a época do “Pra frente, Brasil”. E do “Brasil, Ame-o ou deixe-o”. Ora, justamente por amar o Brasil – desfigurado pela ditadura – é que se fazia necessário e vital não deixá-lo. Ficar e lutar. Naqueles anos, não era possível haver sentimentos patrióticos, pois pátria e ditadores se confundiam, na ambição militar de que essa promiscudade fosse eterna. Não foi.
O fato é que os símbolos nacionais ficaram esquecidos. Recordo-me dos loucos que – por falsa rebeldia ou vingança tola – pisavam na bandeira ou vaiavam o Hino Nacional. E estes – bandeira e hino – eram reverenciados desde os primeiros anos de vida dos pequeninos brasileiros. Nas escolas, nas praças, nos lares. “Jurar à bandeira”, “cantar o hino” eram valores com rituais próprios e com reverência comovedora. Chegava-se, porém, até a um exagero de ordem mística. Com as multidões indo às ruas pelas “Diretas Já”, a bandeira e o hino retornaram ao povo de forma democrática, mais sadiamente popular, como se fossem parte do cotidiano das pessoas. Hastear a bandeira em janelas de casas se tornou demonstração de orgulho cívico. E cantar o hino – de letras difíceis de se decorar – deixou de ter aquela sonoridade marcial de antes para se tornar música quase popular. Isso foi um grande sinal, pois a música é elemento que une pessoas, que traz lembranças e significados. Charles De Gaulle – um dos maiores líderes da França – ao ouvir a “Marselhesa”, dizia-se que ele tomava a mão da mulher Yvonne e comentava: “Querida, a nossa música.”
Eis, pois, que a bandeira voltou a ser desfraldada nas praças, nas ruas, nas calçadas, nas mãos do povo. E o hino cantado com emoção e vibração incontidas por todo o país e, de maneira especialmente comovedora, nos jogos de futebol da seleção brasileira. Pela primeira vez, vimos os jogadores sabendo as letras e cantando com entusiasmo e emoção. E o povo, nos estádios, lançando aos ares os sons que, verdadeiramente, lhe saíam do coração. O futebol, outra vez, fazia-se fator de unidade nacional. Mas, desta feita, com um fervor cívico que parecia estar sepultado. O Brasil era, sim – apesar dos mal-humorados e negativistas – a “Pátria de Chuteiras”, como Nelson Rodrigues a imortalizou. E por quê não? Ora, em Olimpíadas, em campeonatos mundiais esportivos, há disputas ferrenhas entre países para conquistar medalhas e taças, como se fossem troféus de batalhas incruentas. O esporte se transformou – e não adianta colocar verniz sobre a verdade – em importante instrumento político. Ou o mundo já se esqueceu de que, com uma partida de tênis-de-mesa, Nixon conseguiu a aproximação com a China comunista?
O reencontro, pois, do povo com os símbolos pátrios parece-me alvissareiro. No entanto, vejo-me, ainda, tomado por uma inquietação que me acompanha desde a juventude. O lema “Ordem e Progresso” está capenga, mutilado. Quando os “Pais da República” – inspirados pelo Positivismo de Auguste Comte – cravaram-no, na bandeira, como uma filosofia nacional, sonegaram – sei lá se proposital ou descuidadamente – o essencial: o Amor. Pois a notável reflexão filosófica e sociológica de Comte – como organização de vida – foi a seguinte: O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por meta, representando as aspirações a uma sociedade justa, fraterna e progressista.”
Ora, apenas “Ordem e Progresso” como fundamento da vida nacional brasileira acabou levando-nos às mais variadas formas de governo e de sistemas políticos. Pois a “Ordem” pôde ser entendida como a ordem imposta pela truculência, pela ditadura, por tiranos, por inescrupulos. E o “Progresso”, por seu lado, foi e continua sendo alcançado sem qualquer preocupação de ordem ética ou social. Já tivemos o “Progresso” daqueles que “roubam mas fazem”. E tivemos a “Ordem” da força bruta. Tendo o “Amor por princípio” – com o propôs Comte – a Ordem haverá que ser obtida com justiça. E, com “Amor por princípio”, o Progresso será um objetivo ético, solidário, humano e também justo. Se não for fraterna, a sociedade será apenas um conglomerado de pessoas em conflito.
Obviamente, ninguém haverá de pretender mudar a Bandeira Nacional. Mas seria, em meu entender, fundamental que nossas crianças – nas escolas e nos lares – soubessem do verdadeiro espírito que deveria ser cultuado pela nação: “Amor, Ordem e Progresso”. Se nos conscientizássemos disso, poderíamos tornar concreto o sonho do poeta: “Criança, não verás nenhum país como este”. Por que não tentar? E bom dia.