O céu são os outros

CéuPor anos sem conto, frases e expressões de autores foram referenciais de escritores, jornalistas, intelectuais. Ainda agora, uma delas me intriga, pois nunca a entendi além de sua obviedade repetitiva. Foi a da Gertrude Stein: “uma rosa é uma rosa é uma rosa é uma rosa.” E daí?

E pedra no caminho de Drummond? O mundo ficou sabendo que tinha uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho. Qual caminho não a tem? Recordo-me de que, palestrando para crianças que homenageavam Drummond, lhes recitei a pedra do caminho e, no fundo da sala, um garoto chorou. Esmagando lágrimas, ele contou que, também no caminho dele, tinha uma pedra: a separação dos pais.

Sartre, Jean Paul, parece estar, hoje, fora de moda. Mas foi citação indispensável entre os intelectuais da então chamada “esquerda etílica”. Éramos os que bebiam uísque para filosofar, equacionar o mundo, resolver tudo numa noite, mesmo sabendo que, na manhã seguinte, a humanidade destruiria as maravilhas que, na boêmia, havíamos construído. Citava-se Sartre, idolatravam-se Fidel e Guevara, amávamos os Beatles e os Rollings Stones.

Conforme o contexto e a situação, Sartre teve razão ao dizer que “o inferno são os outros”. Em francês, fica mais bonito: “l’enfer sont les autres.” E mais cômodo e prático para justificar a omissão, a covardia, a lassidão, a preguiça. Dramaturgos diziam que suas gavetas estavam prenhes de obras importantes, revolucionárias, mas impedidas de vir à luz por causa da censura. Quando esta acabou, estavam todas vazias, as gavetas.

Compositores calaram-se, a inspiração acabou. Jogávamos a culpa nos outros, o nosso inferno: jornais censurados, editoras amedrontadas, censores atentos, dedos-duros, delatores, como esses que, para espanto geral, o governador Serra criou para denunciar fumantes. Houve, pois e sim, um inferno criado pelos outros. Mas, antes dele, os demônios eram nossos, pessoais, íntimos.

Ora, sou um jogador com alguma habilidade em relação à felicidade. Por isso, desisti, há anos, da pretensão de ser feliz, de ter felicidade. Ela não existe por todo o tempo, mas é real, plena, dadivosa, inexplicável e beira ao divino quando acontece. E, então, mesmo não sendo felizes, as pessoas passam a estar felizes. E são instantes, momentos, fases vivificadas, quase sempre, pela presença do outro. Eis, então, a recíproca da visão amarga de Sartre: os outros são também o céu, não apenas o inferno.

Deus e o diabo, no plano da inquietação humana, estão próximos. Quando o outro e os outros atrapalham, eis o nosso inferno pessoal agravado. Mas, quando encontramos a simplicidade honesta de almas generosas, a solidariedade traz o conforto e o bálsamo da paz. E eis Sartre na berlinda: céus e infernos podem misturar-se a partir de uma mesma pessoa e, também, alternar-se, delícias do paraíso e horrores dos infernos. O que é a paixão senão deuses e demônios numa só pessoa?

Não há, em nossos tempos, quem não saiba onde está o inferno, quem nos demoniza a vida. O que não mais se sabe, porém, é onde foi parar o céu, se ainda existe. Pois tantos são os céus prometidos e desejados que não mais conseguimos localizar sequer um deles, por menorzinho seja. E, quase sempre, está ao alcance das mãos, a nosso lado, disponível, acessível a quem tem coração de enxergar. Quando se imagina um banquete, é um pequeno bocado de manjar. Quando se pensa num castelo, é uma choupana. No coração humano, o paradoxo tem lampejos do divino: enquanto o inferno pode durar toda uma vida, o céu interior é feito de instantes.

As maravilhas da vida, esplendores do universo reduzem-se a quase nada se não tivermos alguém para compartilhar dessas graças. Lembro-me de que os pais diziam, às crianças, que apontar o dedo para as estrelas fazia nascer verruga nas mãos. Hoje, quase ninguém mais tem verrugas, pois não há mais dedos apontando para as estrelas e convidando alguém para também olhar: “Veja, que estrela linda!” Sem o outro, não há como compartilhar. Um naco de pão compartilhado é mais saboroso do que o farto jantar solitário.

Num certo domingo, estive em visita a um casal idoso, num sítio da região. Octogenários, homem e mulher cultos afastaram-se das violências e alucinações urbanas, recolheram-se, vida e velhice a dois. O piano, as telas de pintura, os livros, a música, a cozinha farta e generosa, galinhas no terreiro, cavalos no pasto, passarinhos voando e cantando, a música do silêncio. Quando saí, descobri ter estado no céu. Não era o lugar. Eram eles.

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