Perdendo um olhar, ganhando outro

óculosCada um tem lá seu próprio olhar. Mais do que apenas com os olhos, o ser humano é capaz de olhar com a alma, com seus referenciais e história pessoal. É como se, além de olharmos as coisas de algum lugar, olhássemos também de um tempo, de uma experiência anterior. Uma criança, cujos encantos e beleza se admira, certamente admiramo-los a partir de referenciais anteriores de encantamento e beleza. Na verdade, o olhar de tal forma nos domina que maravilhas e milagres existem porque os olhos se espantam diante deles. Mirar é espantar; admirar é olhar com quase veneração: maravilha é mirabilia; milagre, miraculum.

Ora, não sei, ainda, definir a estranha sensação, que me acompanha, de ganhar e perder. Trata-se dos olhos, dos meus, através dos quais vejo a luz e pelos quais ela me invade. E são, também, os mesmos olhos descortinando horrores de realidades tão diversas de maravilhas e milagres. Devem ser castigos e privilégios, pois o homem existe para ver tudo e de tudo participar. Fazer a escolha, ter a sabedoria de discernir, eis toda a razão da vida.

Há quem tenha olhos de ver a árvore e não enxergar a floresta. Outros olham floresta e árvore, nada veem e nada enxergam. E há quem veja a floresta sem enxergar a árvore. Olhos há que olham com a imaginação. E é disso que não sei se me alegro, se me lamento, pois me vejo, de repente, como que na caverna de Platão mas em mão inversa: das imagens, antes, eu criava sombras. Agora, as imagens estão claras. E a magia parece ter-se ido.

Estou dizendo de uma cirurgia de catarata. Não sabia, eu, estar doente dos olhos, ainda que, ao contrário de Caieiro, eu não tivesse o olhar nítido como um girassol. Numa consulta de rotina, o oftalmologista amigo sentenciou: “Cirurgia e rápida.” E garantiu-me que eu enxergaria bem melhor, a miopia reduzindo-se quase a zero, melhor qualidade de vida. E foi como ele me disse. É outra a nitidez dos objetos, das coisas, das pessoas, da paisagem. Eles são como são, conforme meus novos olhos, conforme o lugar de onde os vejo. No entanto, não mais são como eu os queria ver ou como os inventava.

Explico-me. De pequenino e deitado numa rede, fiquei horas olhando o cortejo de formiguinhas. E inventei que eu era deus para elas, que dependiam de minha vontade para ir e voltar, até mesmo para viver. Acho que, naquela tarde, foi-me plantada, na alma, a semente do ficcionista. E a miopia, também precoce, ajudou ainda mais. Aprendi a ver as coisas através dos óculos e, também, apenas com olhos míopes. Mil vezes, sentado no banco do meu jardim ou sob o caramanchão, vi o céu com ou sem nuvens, com ou sem estrelas. De óculos, eu os via como me pareciam ser. Mas, querendo enxergar o que não era visível, eu tirava os óculos e via objetos embaçados, sem contornos. Nuvens não eram nuvens, nem o céu era céu. Eram o que eu inventava ou enxergava por força dos meus altos graus de miopia.

Com óculos, eu via. Sem óculos, inventava. E me sentia um pouquinho deus ou, então, apenas um contador de histórias. Com os olhos míopes, uma nuvem eu a transformava em bruxa cavalgando vassoura ou em fada deslizando no espaço com véus transparentes. Passarinhos, esses eu os via como anjos voando, alguns deles descendo em meu jardim para namorar flores ou bebericar da água na bacia de barro. Nuvens pesadas tornavam-se tapetes persas alados carregando bandos de guerreiros hostis. E raios e relâmpagos, em noites de chuva, eu historiava como rusgas entre deuses e deusas. Certa vez, uma estrelinha cadente eu acreditei fosse a fada Sininho caindo-me no quintal.

Feita a cirurgia de catarata, enxergo ladrilhos, azulejos, a torneira, o simples vapor e tudo o que vejo me faz pensar em ciência e em tecnologia. A magia do meu olhar de míope acabou. Vejo as coisas como são e muitas parecem sem encanto. Agora, será sonhar, inventar, ver com olhos fechados. Dizem que isso é ver com a alma. Ainda não sei.

Fico com receio de ter perdido a magia de um olhar. Mas sinto que, se for sábio, conseguirei ver além das coisas, o interior delas, talvez a mirabilia e o miraculum de um sorriso, de uma lágrima, de uma ruga, de um outro olhar. Talvez, então, eu olhe, veja e enxergue como Caieiro, e me sinta “nascido a cada momento para a eterna novidade do Mundo.”

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