O misterioso latinório

picture (10)Surpreendo-me com o papa Bento XVI. Sua Santidade tem, pelo menos para o meu sabor, doçuras de dar água na boca. Quando ele escreveu de amor, deslumbrei-me. Quando contemplou, com olhos de artista, a cúpula da igreja ortodoxa turca, tive vontade de, com um bom vinho alemão, prosear com ele, num boteco de Roma. Agora, as missas em latim. Aumenta-me a vontade de retornar, ouvindo o latinório e vendo o ritualismo, como numa platéia, deslumbrado com tanta magia e encantamento. Um dos que sabiam responder tudo ao padre era o meu dileto Cerinha, amigo desde antes de o mundo ser criado. Eu me via entre os que nada entendiam dos dominus vobiscum, sursum corda e ora pro nobis. Mas, muitas vezes, entrei em transe. O mistério fascina, encanta, arrebata, hipnotiza.

Gostei muito do latim, até cheguei a lecionar à garotada. Nunca me esqueci, para ingressar na Faculdade, do “quousque tandem abutere, Catilina, patientia nostra?” Até hoje, sei o rosa, rosae, como não? O meu já era o chamado “latim macarrônico”. Mas era. E a delícia daquele latinório do prazer, de Ovídio, da ars amaratoria? Ainda me lembro, em português, de alguns versos: “Não foi a lei que num só leito vos uniu. Para vós, amantes, a lei é o próprio amor”. Em latim, ficava ainda mais bonito, as namoradas embevecidas sem entender, recordo-me de um trecho: “non legis ussu lectum…”. Do restante, esqueci.

Nos 1980, eu passava alguns dias por semana em São Paulo, a trabalho. Antes do entardecer, eu deixava o escritório e, andando apenas alguns quarteirões, chegava à igreja e Mosteiro de São Bento. Lá está, ainda, o que o papa quer recuperar: o canto gregoriano, o culto em latim, velas, incenso, ouro em penumbra, veludo, a sensação de paz, de refúgio, de recolhimento, a síntese e a compreensão entre “fuga e contemptu mundi”. Pode-se, sim, ausentar-se do mundo sem desprezá-lo. E nada enleva mais o homem do que a arte e o mistério, o sagrado da vida.

 

Era gostoso o latinório e o que o envolvia, o ir à missa e nada entender, mas encantar-me. Entrar na igreja sem saber o que acontecia, mas ficar enlevado. Ver as cenas e ouvir a harmonia e sentir perfumes. Obedecer o sininho sem precisar entender: um toque, levantar-se; outro, ajoelhar-se; outro, sentar-se. Um código para se aproximar do divino. E o incenso penetrando nos pulmões, o padre todo paramentado espalhando fumaça, aspergindo com água benta, as imagens dos santos, até a roupagem deles – Jesus, de tanga; Nossa Senhora na placidez do azul – anjinhos na cúpula da igreja, pedacinhos de céus… Entender, para quê? Quando se entende perde a graça.

Ora, já contei de um amigo mágico, numa praia de Fortaleza. Ano após ano, eu o via na calçada, suas surpresas, aquele encantamento. Eram truques, eu sabia, mas me seduziam. Não me importava entender, bastava-me rir, divertir-me, alegrar-me. Ele, o mágico, era o senhor do mistério. E o mistério me encantava. Quando ele me ensinou a fazer, desencantei.

Era assim com a missa em latim: mistério profundo, misteryum salutis, palavras mágicas, o tempo e o lugar sagrados. Não era preciso entender. Missa em português, compreensível demais, perdeu o segredo. E o mistério acabou. Pois o místico é misterioso.

Aqui entre nós: se for para assistir a show e danças, são mais interessantes os requebros da Jennifer Lopes e da Beyoncé do que as saltitações de padres bailarinos em missas. Ou não? O sagrado, sem o místico, se banaliza no profano. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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