O ópio do povo é mulher

Esse texto foi publicado em 22 de agosto de 1979 em O Diário. E depois selecionado para o livro Bom Dia: Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014

Se me perguntarem quem é o brasileiro mais poderoso, responderei que é uma mulher: Janet Clair. (NA –  principal autora de telenovelas da época). Sozinha, essa mulher conseguiu superar a força do Exército, a violência da inflação, a voz da Igreja, os planos de governo. O João Figueiredo (o presidente) assim – quer salvar o Brasil ou enterrá-lo, começar outra revolução ou terminar a que não existiu. Mas ninguém se dará conta disso se, no ar, estiver uma novela da Janet Clair.

Sou testemunha da força dessa mulher, teimoso que continuo em não deixar derrotar pela televisão. Sou testemunha porque já vi cidades inteiras vazias, automóveis nos abrigos, trânsito livre no horário do “Pai Herói”, que terminou recentemente. Janet Clair derrotou tudo e todos. E mesmo os que não assistiram ao “Pai Herói”, foram derrotados por ela, já que ficamos marginalizados fora do mundo, estranhas e patéticas figuras que, durante bomi tempo, a partir das 20 horas, não tínhamos com quem conversar e até mesmo quem ou o que ver.

Sem nada ter a ver com isso, com mais medo da televisão do que da bomba atômica, eu fui, outro dia, fragorosa e dolorosamente derrotado pela Janet Clair. Pois me vi coagido, forçado, violentamente obrigado a cancelar uma reunião importante porque todos os que dela iam participar foram unânimes: “Só se for depois da novela, pois agora é que se vai decidir o destino de Ana Preta”.

Não houve reunião. E os que, como eu, não assistiram à novela, devem ter sentido o vazio daquele horário, quando os telefones emudeceram e se transformou em verdadeiro atrevimento o tentar comunicar-se com qualquer pessoa naquele espaço de tempo transformado em coisa sagrada.

Aliás, quando um jornalista amigo me censurou por certo ceticismo que me anda acompanhando, fiz-lhe um desafio: “Se você acredita que há muitas coisas que podem ser feitas, convide as figuras mais expressivas de Piracicaba para uma reunião sobre poluição, ecologia, fome, desajuste social no horário da novela”. Fui mais longe no desafio: “Se você conseguir reunir, de cem convidados, apenas 10, pago-lhe uma caixa de uísque O meu amigo jornalista não teve coragem de aceitar o desafio.

Reconheçamos, por uma questão de prática e de inteligência: ninguém pode com a Janet Clair. No tempo do consumismo, ela é a grande sacerdotisa. Consegue cegar olhos, tapar ouvidos, calar bocas, aquietar consciências, vendendo a ilusão de que o povo – sem qualquer objetivo mais sério ou ideal mais nobre — está precisando, Repito e insisto: não sou contra a televisão, o mais fantástico veículo de comunicação que a inteligência humana conseguiu, até aqui, conceber. O que me espanta, abisma,  o que me aterra, é ver o poder mortífero e emburrecedor que ela transmite.

O que será de nossa vida, santo Deus, se esperar, como prêmio, à noite, horas alienadas e diante de um televisor? Tenho medo das horas que me passam, dos minutos que se perdem. E todo um povo está sendo tragado e usado pelas goelas e mãos da televisão que nada mais fazem do que o jogo do poder. Se Marx vivesse, diria que Janet Clair é o verdadeiro ópio do povo. E eu lhe daria razão. Bom dia.

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