O tapinha no bumbum

BumbumCerta vez, cometi o delito de dar uns dois ou três tapinhas no bumbum de meu neto, que tinha então 6 anos, um malandrinho que me enlouquece nas poucas vezes em que me invade o mosteiro. Vi-o subir no barranco e tentar atirar-se à piscina. Com medo, gritei, advertindo-o. O bandidinho insistiu. Chamei-lhe o pai, que não ouviu, absorto num jogo de truco com os demais irmãos e amigos. O anjinho de cara suja mostrou-me a língua, fingiu atirar-se, gritei novamente, ameacei-o com a Febem. E, então, ele se atirou.

Não tive dúvidas. Esperei-o sair da piscina, puxei-o pelo braço, dei-lhe três palmadinhas no bumbum, arrastei-o até o colo da mãe, explicando que ele se arriscara a quebrar o pescoço. O garoto, chorando — mais de raiva do que de dor, pois palmadinha de amor não dói e o bumbum dele é fofinho — inquiriu-me: “E daí, se quebrasse? O pescoço é meu e você não tem nada a ver com isso.” Tive vontade de esganá-lo. Mas, em tempo, lembrei-me da existência de um tal estatuto do menor e do adolescente. Pensei em invocar o estatuto dos idosos, mas desisti.

Confesso ter chegado ao limite da saturação. Antigamente, o Stanislaw Ponte Preta lavava-nos a alma com a publicação semanal do Febeapa (Festival da Besteira que Assola o País). Agora, no entanto, as besteiras, tolices, estupidezes como que se tornaram símbolos de inteligência e de sabedoria. Desde o Presidente da República à Galisteu, ao Ronaldo Gorducho, basta alguém com espaço na televisão para abrir a boca e suas tolices tornarem-se referências. Palpite virou opinião. E falar besteira é fazer filosofia.

Filho precisa, sim, de tapinhas no bumbum, de puxões de orelha, de castigos, de punição. Não se confunda com violência, que esta é abominável. Mas eu gostaria que deputados e senadores — pretensos doutores em educação e em autoridade paterna — me digam como é possível educar sem lei. E como pode haver lei sem penas. Ora, sou daquela geração de pais que estragou o Brasil com excesso de “democratismo”, a geração de todos os “psicologismos”, do “papai e mamãe amigos”, tão amigos que, quase sempre, deixaram de ser papai e de ser mamãe. É a geração que, temerosa do autoritarismo, feriu de morte a autoridade. Inventamos uma liberdade irresponsável e o resultado foi terem-se multiplicado os autoritários por ter-se perdido o senso de autoridade. Minha geração ensinou os filhos a banalizarem o tratamento aos pais, trocando o “senhor” pelo “você”. Como se pai e mãe fossem amiguinhos da rua. Até Deus passou, em certas igrejas, a ser tratado de “você”. A partir daí, cadê pai, cadê mãe, cadê professor?

Vivi uma situação de que não me esqueço e, por isso, quando me parece adequado, conto e reconto. Ocorreu em 1985. Lá estava, eu, convidado a uma palestra num encontro de juventude, promovido por organizações ecumênicas. Após a palestra, fui abordado por uma adolescente, menina de seus 16 anos. Os olhos dela estavam, ao mesmo tempo, febris de expectativa e apagados de desesperança. A alma parecia escapar-lhe dos poros. Ela pedia uma conversa a sós.

Afastamo-nos alguns metros, ela me convidou a acompanhá-la à capela. Acompanhei-a. Ela se ajoelhou diante do sacrário, pediu-me fizesse o mesmo. Ajoelhei-me ao lado dela. No silêncio e olhando o vazio, o peito quase explodindo ela suplicou: “Me dê um tapa no rosto.” Assustei-me, tentei repelir o pedido. Ela insistiu: “Me dê um tapa no rosto”, o olhar desesperado. E, então, como numa iluminação, entendi que aquele gesto — um tapinha no rosto — poderia ser, para ela, um momento culminante, de saída ou de permanência em seu poço de conflitos. Dei-lhe um tapinha. E ela desabou em meus braços, chorando, soluçando, como se todo o peso do mundo lhe saísse do corpo.

A menina — na época — vivia uma relação íntima com o namoradinho, a vida sexual deles sendo conhecida por toda a família. Mas ninguém lhes dizia se era um relacionamento certo, equivocado, errado, prematuro. Ela se sentia absolutamente ignorada. E, chorando, suas lágrimas queimando-me o ombro, falou: “Não me lembro de meu pai, em minha vida, ter-me dado um beijo ou um tapa.”

Há, sim, tapinhas de amor. E, talvez, apenas Deus saiba quantos adolescentes e crianças não estão implorando por um tapinha no bumbum.

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