Onde mesmo?

picture (65)Era jovenzinha a entrevistadora da tevê. Pouco mais de vinte anos. Cursava, em cidade próxima, o último semestre de jornalismo. Rabiscando o papel, hesitava: começar por onde, perguntar o quê?. Nos olhos, esse brilho estranho que parece fixo em quase todo rosto jovem: de alegria e de melancolia, regiões cinzentas da alma onde o lusco-fusco se mistura ao alvorecer. É um rir com lágrimas. Ou um chorar com sorriso. Não sei.

A menina exsudava inocência de coração. Tentei deixá-la a vontade e inverti a situação, de entrevistado a entrevistador, aguardando o momento da gravação. Ela desandou a falar. De seus gostos, de seus receios, de suas preferências, de como se sentia ao início de carreira. De repente, contou: “Eu falo para minha mãe que os meus tempos são mais fáceis do que os dela, com maiores recursos, mais comodidades. Mas são muito mais difíceis.”

Olhou-me, uma pergunta silenciosa, como se querendo saber se eu entendera. Acho que, se não entendo, compreendo, percebo. Mas, antes de opinar, ela própria falou, prosseguindo: “É muito difícil. Parece estar tudo pronto mas não está. Corre-se, corre-se, não tem parada. E a gente não sabe para onde está indo.”

Ela também percebera: o precipício, ali na esquina. Basta dar um passo. Ou ficar à margem – como quem descansa à beira da estrada – para ver a manada humana passar, atropelando-se, caindo no mesmo buraco, dentro do fosso. Quem consegue escapar retorna cansado da correria inútil, desalentado da ilusão equivocada. A menina percebera e hesitava continuar, percebendo sinais e direções errados, caminhos equivocados. Mas ficar onde, ir para qual outro lugar, que outros caminhos, quais veredas?

Contou-me dividir as aflições com a mãe, mulher ainda jovem, pouco mais de 40 anos. E que a mãe a fitava com olhos tristes, perplexos, também sem resposta. E também à beira do precipício. De sopetão, a jovem repórter me perguntou se eu vira um programa sobre cantoras famosas: “Você não ouviu a Edith Piaff? E a Aretha Franklin, Sarah Vaughan?” E passou a falar de músicos, cantores, compositores, escritores, como se fossem íntimos de seu cotidiano. Os seus, na verdade, eram encantamentos e fascínios da minha geração, ecos, talvez, que os pais dela guardaram em seus baús de recordações. Os descartáveis de hoje estavam eclipsados pelo eterno de sempre. “Parece que vivi aquela época…” – falou a jovem. Ri-me. Às vezes, penso ter vivido o tempo das Cruzadas. E que fui vítima da Inquisção.

Os moços vêem-se nostálgicos do que não conheceram, de tempos que não viveram. É a história, também, das gerações anteriores que, quando jovens, tinham nostalgia do que viera antes. É o fluir da existência: o ontem torna-se hoje, o hoje será amanhã, mesmo se não nos dermos conta desse “continuum” da vida, dessa corrida de bastão, os que vêm de trás recebendo-o dos que estão à frente.

Na realidade, pertencemos mais ao ontem do que ao hoje. E, ao hoje, mais do que ao amanhã. O novo e o antigo encontram-se, daí porque haver indagações desnecessárias: as coisas que acabam, acabam pelo surgimento de outras, ou as que surgem, surgem por outras terem acabado? O novo amor acontece por ter morrido o antigo ou o antigo morre por ter surgido o novo? É como um milagre, esse de o antigo permanecer quando novo tão depressa envelhece.

A nostalgia não é da menina, mas de todos e de sempre. A alma humana carrega marcas de um paraíso perdido. Na memória do corpo e do coração, sabe-se como ele é. Mas se esqueceu de onde está. Bom dia.

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