Primavera, consagração, sagração

picture (14)Quando a Primavera se anuncia, penso em sagração. E em consagração. E se alguém roubo títulos e imagens, não é a Stravinsky, cuja sagração ainda me confunde. Encanto-me com a do cubano Alejandro Carpentier, em meu entender um dos mais fascinantes de nossos escritores, ainda que posto à margem do mercado. Sua obra é universal até mesmo por ter sido mais francês do que latino-americano, criando o realismo mágico com as palavras. Na juventude, quando o descobri, aumentou-me, ainda mais, a dolorosa vergonha de escrever. Descobri ser o castigo aos que se atrevem aproximar-se dos grandes mestres. Deveria, de minha parte, ter desistido. Não consegui. De vergonha em vergonha, continuei. Continuo.

Aconteceu-me, diversas vezes, de o trabalho do escritor, ainda que simples escrevinhador, ser levado em brincadeira. Um amigo, ainda agora, ri-se de mim: “Então, ficar escrevendo coisas, isso é trabalhar?” Pior foi quando resolvi mroar num lugar distante, povoado de gente simples. Relembro sempre, para não esquecer. Eu era casado, duas vizinhas conversavam sem perceberem que eu as ouvia. Uma falou: “A mulher dele sai para trabalhar e ele fica aí, dia e noite, lendo e escrevendo, sem fazer nada… Às vezes, amanhece e ele continua lendo e escrevendo.”

Agora, outro setembro. E Carpentier retorna. E, então, a sua “Sagração da Primavera” instiga a vontade inquieta de sagração e de consagração. Na verdade, há que se fazê-lo, a cada ano. Agora, mais do que nunca. Quando a calmaria parece ter-se instalado, ventos novos surgem, varrem poeira de agora, deixam a descoberto crostas antigas. É, então, que soa a voz do poeta amigo: “Encontrar seu lugar no mundo.” Seria preciso discordar dele. Mas, quando se pensa ter encontrado, o lugar desaparece; se se acredita tê-lo perdido, está diante dos olhos.

Mas é setembro e Carpentier reapareceu. Preparei-me para isso. Não tenho e nem mais busco explicações para a quase embriaguez diante dessa sacralidade cotidiana do profano. Pouco se me dá escrever seja ou não trabalhar. A palavra é uma das bruxarias humanas. É mágico poder abarcar tudo o que existe na forma escrita: mundo, vida, coisas, pessoas, sentimentos. Por mais rústico seja, por mais rude, o homem conseguirá – com algumas letras e com três únicas palavras – revelar o que sente e o que vive por sua família: “eu amo vocês.” O infinito grava-se em letras.

O jardineiro chegou, anfitrião da Primavera, o celebrante. Eram os preparativos para a sagração. Flores e plantas, borboletas voando ao lado de beija-flores, esguichos d´água inventando arcos-íris. E o ipê florescendo. E os manacás. E o cheiro de terra molhada, terra no cio. “Luscofuscar…” – o verbo apareceu, como nas asas de uma abelha. Tive certeza de que existia, de nem a abelha nem eu termos imaginação para inventar a beleza de um verbo luscofuscar.

“Trabalhar enquanto tem luz…” o sábio Ruskin sugeriu a Proust. E era o que fazíamos, mesmo que ninguém soubesse, pouco importando se carruagens iam, se ficavam. Trabalhávamos na sagração da Primavera: o jardineiro, borboletas, formigas, abelhas, a passarinhada, flores exalando aromas, trescalando. E eu, com eles, à procura do verbo luscofuscar. Existia. E luscofuscava. Já era lusco-fusco, hora da sagração não apenas da, mas também à Primavera. Consagramo-nos. Bom dia. (Ilustração: Araken Martins.)

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