Quaresma, fantasias e saudade

picture (19)Aconteceu-me de novo. E era tanto o cansaço que, quando suspirei, pareceram ser, os meus, apenas fiapos de suspiros. No entardecer, o pouco do ar – pesado, cheirando a mofo, ar de calor e de chuva – não me ia além da garganta. As coisas estavam tão paradas que era como se estivessem, também elas, aguardando outras coisas. Apareceram sabiás. Percebi: era Quaresma.

A versão é sempre maior do que o fato. Criam-se lendas, fantasias, inventam-se histórias, fazem-se heróis, constróem-se covardes. De repente, lá estava eu entre moços, acho que com pouco mais de vinte anos. Eles queriam, na preguiça do Carnaval, conversar com o velho e tolo jornalista.

Novamente, veio-me a sensação de faltar-me apenas cachimbo para sentir-me pajé de tribo. Os moços não falavam, palravam. E perguntavam coisas que eram mais versões e lendas do que fatos verdadeiros, reais. Ora, tenho certeza de nunca tê-las alimentado mesmo porque, entre críticas que me fazem, a mais severa é a de eu não camuflar sentimentos, emoções. Foi-me sugerido, quase sempre, escrever racionalmente, como se a razão fosse assassina do coração. Teria sido minha morte, aprisionar-me a estruturas apenas racionais de pensar. Coração e razão – é no que anda acredito – são cúmplices.

Esta coluna, o Bom Dia, completará, em agosto, 44 anos de existência. Nela, ficou o cotidiano de minha alma. Mas há quem não entenda de almas. E que, por isso, busque explicações, razões. Não há razão alguma. Nem explicação. A vida é pulsação. Acreditar nisso é ir-se ao ritmo dela, em duração e ênfase. Como a música, o ser humano apenas existe no tempo. Logo, há que se viver ao compasso de cada composição. E na agonia de existir. É agônico o pêndulo entre o deslumbramento da vida e a finitude de si mesmo.

Curiosos, os moços perguntavam de prisões, de torturas. Devo tê-los decepcionado ao lhes dizer apenas de torturas psicológicas, de prisões domiciliares – o meu não saber se a dor na carne dói mais do que o doído na alma. Se valeu a pena? Fernando Pessoa já o respondeu: só não vale a pena se a alma for pequena. E, então, quiseram saber de amores, de mulheres e de paixões. Ri, ri-me: estão mais vivas do que imaginei as lendas de Camelot.

Tem gente de quem a gente tem vontade de gostar. E só de ter vontade, já se está gostando. Tive vontade de gostar deles, gostei. E o olhar de nossos olhos – o olhar dos olhos deles, o olhar dos meus – encontravam-se no caminho. Aquele era um encontro, inesperado como os preparados pelo destino ou pelo acaso. Pensei em Steinbeck, no destino que viaja de ônibus. Talvez fosse o destino num fim de Carnaval, em meu jardim. Apenas falei: “Amar, amei.”

E amei. Mas diferentemente de versões, invenções, fantasias. Ou de vulgaridades aprazíveis apenas a quem é vulgar diante da vida. Quem há de mais triste do que o medroso de amar? O amor é privilégio, graça. E, por isso, milagre na vida de quem o recebe. Não há vulgaridade no amor. Aventuras e genitalismo, nisso se apequena e vulgariza a vida.

Um homem vivido – para ocultar a saudade – confessaria não ter amado tanto ou quanto desejou; mas que amou mais do que mereceu e menos do tanto e quanto disseram que amou. Na verdade, há um único amor na vida. E tão plenificante que parece anterior à própria vida. Por isso – se o perde ou se o amor se vai – o homem o persegue ao longo da existência, na esperança de reencontrá-lo. Ou de repeti-lo. Pois os tantos amores não passam, na verdade, de uma quase que insuportável vontade de outra vez. Na Quaresma, lembranças doem mais ainda. E bom dia.

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