A raiva num retorno

O texto foi publicado em O Diário em 15 de abril de 1982. E depois selecionado para o livro Bom Dia – Crônicas de Autoexílio e Prisão, lançado em 2014.

Estou voltando. E com raiva de mim mesmo, vontade de agredir-me por ter cedido à tentação do desânimo, incomodado com a consciência de minha própria fragilidade. Deixei-me prostrar-me, abater-me, acreditando numa derrota total quando, na verdade, fora apenas a perda de uma simples e tola batalha. Tolo que fui, dando tanta importância a um Nocite qualquer (NA: promotor público à época), esquecido de não serem os cargos que fazem os homens, mas estes que elevam ou mediocrizam os cargos.

Doeu-me e machucou-me muito ver um pobre promotor tão obcecado com minha condenação, enquanto uma cidade vive a tragédia de todas as canalhices. Mas, ao invés de penalizar-me de um homem que coa moscas e engole elefantes, deixei-me ferir, talvez por ser, ainda, de um tempo em que me pareciam sagradas e intocáveis as instituições.

Ora, tenho mil anos, o cansaço de mil anos, os pés calejados de todas as estradas por onde andei. A vida, pois, não mais me deveria trazer surpresas. Quase todas as alegrias e decepções já as tive e as conheci. São, sim, mil anos de vida, pois, na faina jornalística, cada minuto representa como que um pedacinho da eternidade. Garanto não haver espaço em meu corpo que não tenha sido apunhalado. Nem, no coração, há lugar sem a marca de uma cicatriz ou a marca de um espinho. No entanto, a gravidade de tudo está na alma, esse mistério que não se toca e não se vê, mas que, para mim, é tangível, palpável e vulnerável, a ponto de doer e de sangrar.

Estou, pois, voltando. E com raiva de mim mesmo. De ter-me cansado. De ter-me sentido derrotado. Raiva de deixar-me cair na tentação do desânimo. Voltando ao meu lugar, como se fosse um destino ou uma maldição, pois o que mais almejo – e pelo que minha alma arde – é paz e serenidade. Mas, paradoxalmente, mergulho na guerra e nos turbilhões.

Portanto, estou voltando. Com a fúria de quem se sente forte para enfrentar o próprio mundo e aprendendo — do fracasso de uma

desistência – a graça que Deus me dá de, apesar dos meus mil anos, ter, ainda, a capacidade de indignar-me. Conformo-me com esse destino ou com esta maldição. Não me foi dado o direito de fazer o que desejo, mas o dever de fazer o que deve ser feito. É uma pena, mas me convenço — agora, em definitivo – de que morrerei assim. Num campo de batalha e não da maneira como sonhei: numa cadeira de balanço, olhando o por-do-sol. Bom dia.

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