“Rêve”, “revéillon”, sonho

pictureEm poucas horas, estaremos diante da última noite do ano, de mais um ano. Para os pragmáticos ou mais tristes, talvez seja apenas uma data de calendário, outra página virada. E o dia seguinte, então, será apenas mais um dia. No entanto, é mais do que isso. Pois o povo sabe viver e sonhar além dos pragmatismos, da praticidade das coisas ou da simples banalização de cada dia.

O último dia de cada ano tem mágica própria, como se fosse uma baldeação: sai-se de um trem, entra-se em outro. Parecerá noite de loucuras, de entorpecimentos, noite de desvarios – mas é, apenas, a noite da alma. Talvez por isso, o nome dela tenha permanecido como revéillon, a refeição noturna dos franceses, em especial nessa última noite do ano. Não uma refeição qualquer, mas a ceia especial, íntima, coloquial, que se alonga noite a dentro, até o raiar do dia.

Ora, réveillon tem a mesma raiz de “rêve” sonho, de “réveiller”, despertar. Não seria à toa, pois, que seja, assim, tão especial: um sonhar e – talvez e por que não? – um despertar de uma realidade para outra. Não são esses, na realidade, os desejos ocultos que fazemos uns para os outros, em nossos abraços, expectativas e congratulações?

Confesso estar evitando pensar em esperanças e falar delas. Pois elas, de tanto terem-se banalizado, quase que perderam o sentido. Se elas todas, as esperanças, são quase sempre superficiais, é preciso relembrar que a Esperança existe. Insiste-se muito na necessidade de fé, que, talvez, estivesse faltando a cada um de nós ou à comunidade. Fé é acreditar, ter certeza até mesmo naquilo que não parece ter lógica. Como, pois, haver fé se, ao mesmo tempo, não houver esperança? Crer no que existe e crer no que haverá de ser, eis, talvez, o segredo.

A Esperança permite sonhar. E, em todas as nossas praticidades, vai-se tornando cada vez mais claro que as pessoas estão em busca do sonho, de sonhos. O mundo – também esse nosso mundo do cotidiano – permitimos fosse construído muito mais por pesadelos idealizados por outros do que pelos sonhos individuais de homens com corações generosos. É esse, talvez, o nome da realidade: o pesadelo que inventaram sem nos terem consultado.

Os pragmáticos, no entanto, nem sempre estão equivocados. Muitas de suas certezas ajudam-nos a caminhar. Num ponto, eles têm razão e poderíamos aprender com eles: 2008 será, também, uma página virada. Não poderá ser esquecida, pois nela escrevemos histórias pessoais e coletivas. A diferença está em que podemos virar a página de pesadelos para ir em busca de páginas de sonhos. Que, assim, 2009 possa ser construído muito mais pela Esperança do que pelas certezas dos que nos construíram dores e amarguras.

Que esta noite, pois, seja de sonho e de despertar: de rêve, de réveiller, o revéillon. Não à toa e em todos os cantos, os homens mantêm rituais, estimulam simbolismos: roupas brancas, invocando a paz; doze uvas verdes, no desejo de fertilidade para os doze meses; as sementes da romã. É o revéillon também como ceia.

Talvez o simbolismo desse estar à mesa possa servir-nos de motivo para um reencontro, um recomeço, um reinício de paz. Então, mais do que simples refeição, o revéillon poderia assumir a dimensão de um festivo e esperançoso banquete eucarístico. E, nele, cada um de nós, levando uma oferenda de boa vontade, talvez conseguisse despertar, no outro, o desejo da comunhão universal que nos falta. Bom dia.

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