Rompendo com o mundo

CasaCerta vez me dei conta de que havia ficado oito dias sem sair de casa, sem sequer atravessar o portão e chegar à rua. E o terrível de tudo é que não senti falta do mundo. Isso é que me preocupou: eu não ter sentido falta do mundo. Mas me deu paz e serenidade saber que, em contrapartida, o mundo também não sentiu falta de mim.

Foi uma descoberta que, em outros tempos, poderia ser dolorosa: “o mundo me ignora e eu ignoro o mundo”. No entanto, por mais terrível que tivesse sido à minha inteligência tão viciada em culturas oficiais, sinto que me fortaleci em convicções que me perseguem.

Ora, há pessoas que costumam fazer retiros espirituais para refletir sobre a vida, buscar rumos, ter reencontros. Outras tiram férias para retomar mais fortalecidas às competições. Algumas, mais adaptada à moda e ao tempo, vão a “spas” ou a psicanilistas. No fundo, dão-se, a si mesmas, uma pausa do mundo para, depois e então, retomar a ele.

Querem adaptar-se, adequar-se. Porque, então, não construir o seu próprio mundo? Isso não é possível para quem desejar e almejar dinheiro, destaque, notoriedade, aplausos, isso a que se dá o nome sucesso. Mas é absolutamente possível para quem é mais ambicioso. Ambição pouca é besteira. Ambição ilimitada, essa é fascinante.

A minha é uma ambição ilimitada. Não tenho qualquer interesse pelo mundo que é de todos, que todos disputam palmo a palmo, satisfazendo-se com pedacinhos dele. O que eu quero é um mundo meu, onde eu seja dono e rei, deus e senhor, um mundo onde haja comunidade, essa que se inicia a partir de apenas duas pessoas. Para que a multidão?

O fato é que fiquei oito dias sem sair de casa e me aterrorizei ao perceber que não senti falta do mundo exterior. Foi o terror do rompimento de um tabu: as luzes da platéia não têm importância. Então, passei a entender melhor os eremitas, os misantropos, até mesmo Cristo em sua solidão no deserto. Eu, com os meus livros, os meus discos, os meus objetos, a máquina de escrever, a mulher amada, algumas e poucas pessoas queridas – para que ter menos que isso, estando com a multidão? Naqueles dias, de quando em quando, um telefonema, um toque de campainha, um ligar de televisão. As coisas, as pessoas, o mundo continuavam os mesmos. E eu, mais rico por dentro. Bom dia.

Publicado originalmente na Tribuna Piracicaba em 2/03/93

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