Uma náusea de viver

picture (37)Na realidade, acho que, de escrever, cansei, a inevitável crise da falta de assunto, de idéias, de motivação. Estou esfalfado, algo me diz de náusea de viver. Falam ser estresse, até eu repito seja isso. Mas, aqui entre nós, as causas são outras. E, no entanto, as conseqüências são esse cansaço de escrever, cansaço da vida, o olhar mortiço diante do mundo, a existência sem graça, sem alegrias.

Imaginei um feriadão, o último, lindíssimo, sereno, pacífico. E foi. E esperei dias de celebração a dois, à luz de velas, sonoridade de Bach , duas taças apenas de champanha. Mas eu não me lembrava de parentes que fazem visitas repentinas, trazendo coisas, guloseimas, comidas, bebidas. E chegaram, prontos até mesmo para o café da manhã seguinte. Abrira-se a porta do hospício e os malucos foram para minha casa.

Devo já ter escrito sobre o que me ocorreu numa reunião semelhante, um já longínquo revéillon, tempo de meus filhos ainda solteiros. Cismei de, naqueles dias, ler um livro que me fascinou, “A Invenção do Restaurante”. Enquanto eu me deliciava com a leitura, um batalhão de mulheres agitava-se na cozinha, entre o forno e o fogão. Eram mares de frituras, gorduras, molhos soterrando o mundo. Indignado e tentando colaborar com a reeducação alimentar da família, li, em voz alta: “Comida tem que ser restauradora, por isso é que existem restaurantes, tá escrito aqui no livro.”

As cozinheiras convidaram-me a sair daquele espaço sagrado. Mas insisti, lendo o que Voltaire dissera aos “restaurateurs” da época: “Juro que meu estômago não consegue se acostumar a essa nouvelle cuisine. Não posso tolerar um pedaço de vitela nadando em um molho salgado. E me recuso a comer um picadinho de peru, lebre e coelho.” A cozinheira me olhou, desafiadora: “Tudo bem. Se é assim, o senhor tire o olho aqui do tender com fios de ovos e vá comer caldinho com esse tal de Voltaire.” Calei o bico.

Ora, não sou de gulodices. Pelo contrário, minha alimentação beira a frugalidade na maior parte dos dias. Mas, nesse último feriadão, experimentei bocadinho disso, bocadinho daquilo, torresminho, tutuzinho de feijão, grão de bico com lingüiça calabresa, um cardápio absurdo e deselegante, regado também com invencionices na elaboração de caipirinhas: de pinga, de vodka, de tequila, com copinho de uísque daqui, cervejinha no copinho de lá. Foi ótimo. Só me esqueci do dia seguinte, dos dias seguintes. E aconteceu a grande humilhação que os céus enviam contra o pecado da gula: a dor de barriga.

Eis, pois, as razões de minha náusea de viver, de ver-me humilhado, vencido, derrotado, esfalfado, como se a vida me tivesse abandonado. Senti-me morrer do modo mas banal e prosaico do mundo. E, então, tive um ato devocional: pedi a Deus que não me deixasse morrer de dor de barriga. Que diriam, de mim, os netinhos? Imaginei-os contando, quando crescidos: “Vovô? Coitado, morreu no banheiro. De dor de barriga.” Dias depois, Deus me livrou desse vexame. Bom dia.

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