Um tiro e a morte da inocência.

Acabei, finalmente, descobrindo porque o ano de 1954 – já tão distante – ainda me marca a alma, tão vivo na memória. Não o direi aqui, reservando a história para um livro final, o da revisão de tudo. No entanto, em pinceladas, já narrei detalhes do que me aconteceu de bom e generoso naquela adolescência dourada. Pois, na verdade, não foram a adolescência e os anos, mas também o mundo que parecia dourado. E houve o tiro decisivo, o tiro que mudou a história. Naquela manhã de 25 de agosto de 1954, amargávamos, ainda, duas decepções. Na Suiça, o Brasil fracassara em outra Copa do Mundo, com jogadores do nível de Newton e Djalma Santos, Didi, Julinho. Em Long Beach, a baiana Marta Rocha – tida como a mais bela mulher do mundo – perdera o título de “Miss Universo”, por duas polegadas a mais. Nos quadris.

Crises significam transformações. E era o que mais tínhamos, crises e transformações. Como se, exausto de paralisias anteriores e de estruturas envelhecidas, o mundo quisesse experimentar uma primavera permanente. Tirou-se o pó das superfícies. E surgiu a volúpia do novo. E do belo. E da aventura. Tudo aconteceu ao mesmo tempo. Quanto mais crises, mais transformações. Quanto mais transformações, mais ousadias. Foi como se, bêbados, os deuses tivessem perdido as rédeas, eles próprios. Ninguém sabia explicar, mas era bom o anúncio de tempos e de mundos novos. Foi coisa mais de viver do que de entender.

Iconoclastia, talvez tenha sido o nome. Naquele 25 de agosto de 1954, os rumos do mundo, do Brasil, de Piracicaba pareciam um “script” já definido: era preciso romper com o antigo, derrubar ídolos, romper tabus, a juventude iconoclasta abrindo porteiras, vencendo cercos. Getúlio Vargas simbolizava o antigo, o já desgastado “sorriso do velhinho”. Em Piracicaba, Samuel Neves e Luiz Gonzaga entravam em eclipse, Luciano Guidotti incendiando o imaginário da população, também ele visto como iconoclasta. Jânio Quadros nocauteara o ademarismo.

Moços ainda “quadravam jardim”. E as dores de amores sofriam-se ao som das vozes de Tito Madi e Maysa Matarazzo. Mas, sem pedir licença, Bill Halley e seus cometas chegaram com o “rock”, intimidando o bolero e o samba canção. Marilyn Monroe e Brigitte Bardot mostraram – às comportadas mocinhas dos colégios Piracicabano e Assunção – que as curvas femininas têm razões que a razão desconhece. E os rapazes, por sua vez, tentaram descobrir quantos hormônios e toneladas de testosterona eram necessários para imitar Marlon Brando e James Dean. Foi quando um deus pagão caiu em Piracicaba e, chamado de “diabo louro”, atrapalhou a vida dos moços. Seu nome: Wlamir Marques. E – ai de nós outros! – a festa foi só dele.

Passaram-se quase 60 anos desde aquele 25 de agosto de 1954, quase não dá para crer. Digo-o, porém, apenas por mim, por não conseguir avaliar como um tiro transformou outros adolescentes que, como eu, tinham apenas 14 anos naquela manhã. Em mim – confesso-o – foi como a perda da inocência, a descoberta do ódio, a revelação de misérias que, quase sempre, se ocultam por trás de máscaras, no barulho da festa, na embriaguez das expectativas e na ressaca do baile. Getúlio Vargas, ainda que presidente da República, era um estranho à minha geração. Nascemos, ouvindo falar de um caudilho, de um ditador. O tiro fê-lo mártir.

Naquela manhã, o padre Eduardo Affonso abriu a porta da nossa classe no Colégio Dom Bosco. Ele estava lívido. Falou, como se anunciando o apocalipse: “Vão para casa. Mas em ordem e em silêncio. O presidente Getúlio Vargas se suicidou.”

O tiro de Getúlio mudou a história. A minha, também. Vi o desespero nas ruas, soluços do povo. Então, a partir daquele dia, comecei a procurar, nos livros e nos jornais, explicações. Por que o poder consegue despertar tantos ódios e misérias? Mais de meio século depois, muita coisa entendi. O primordial, no entanto, parece faltar-me. O eco daquele tiro ainda ressoa. Inutilmente. Bom dia.

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