Viver e jogar botões

Jogo de botãoHá apenas alguns dias, um primo querido – quase próximo de seus 80 anos – me enviou um e-mail: “Como está o seu time de futebol de botões?”, perguntou-me ele. Fiquei constrangido, acho que triste. Pois não tenho mais nenhum time de futebol de botões, mesmo tendo sido, com a minha equipe, campeão dessa modalidade. O meu time era o Corinthians, sempre foi. Mas, no campeonato de botões, por culpa de meu primo mais velho. Pois ele decidiu, unilateralmente, que o seu time (dele) seria o XV de Piracicaba. Foi estranho: o XV de meu primo, no jogo de botões, jogava em Bauru. E ele ainda tem cada botão: o goleiro Ari, os zagueiros Elias e Idiarte, Gatão como armador, Picolino de centro avante… Éramos felizes e vitoriosos. E não sabíamos

Ainda ontem, escrevi, motivado pelo seriado “Bonanza”, algumas divagações em torno de nostalgia e saudade. Pois aí está: convenço-me, cada vez mais, de o mundo estar dominado por esse profundo sentimento que Nietszche já explicara como sendo o do “eterno retorno”. E é algo óbvio: quando não se tem mais para onde ir, fica-se em suspenso. E surge a encruzilhada, que é o espaço admirável para profundas reflexões e tomadas de decisões. Na encruzilhada, é-se obrigado a decidir em algum momento: ficar parado, sem ir a lugar algum; avança, recuar, ir para o caminho da direita, da esquerda, buscar atalhos? Quem não decidir permanecerá imobilizado. E será vencido.

Há, sim, essa busca de valores perdidos que, em meu entender, mais do que valores, são princípios. Ora, valores podem transformar-se, quase sempre se transformam. Mas princípios, mesmo quando aparentemente soterrados, permanecem para um ressurgimento. Se não acontecer, o principal terá morrido e, então, nada mais haverá para fazer, a não ser estar entre escombros e ruínas.

Quando se chega ao fundo do poço, a única possibilidade de vida é sair dele. Creio que já chegamos. Há uma desordem moral de tais proporções que o aturdimento é coletivo, razão porque especialmente a juventude está literalmente robotizada, sem horizontes, sem referenciais. Até aqui, parece ter havido a vitória final do banditismo em todas os setores da vida. São, no entanto, vitórias parciais, como sempre ocorreu na história. O banditismo é feio e, portanto, será vencido pelo belo; o banditismo é ruim e, portanto, será vencido pelo bom.

A onda de nostalgia corre o mundo e é formidável. E quem teve a felicidade de mergulhar na obra de figuras como Mircéa Eliade, Joseph Campbell, Jung, entre tantos outros, verá que nada acontece isoladamente, como se a humanidade estivesse ainda ligada ao mesmo cordão umbilical. Tudo o que acontece na China estará repetindo-se, em outro contexto e com outras pessoas, aqui. São ondas que se propagam como que misteriosamente, fenômeno social e espiritual que se repete desde quando nem sequer existiam comunicações entre povos e países.

Quando um homem com 80 anos, como aquele primo querido, se mostra preocupado com jogos e times de futebol de botões, isso há que ser entendido como parte desse eterno retorno. A velhice não é saudosismo tolo, mas tempo de seleção de valores e de preservação de princípios. Nenhuma revolução, seja econômica ou política, conseguiu matar Mozart, Chopin, Beethoven, Proust, Francisco de Assis, Michelangelo, Tereza de Calcutá, Tereza D´Ávila, tantos outros que comprovaram a maravilhosa dimensão moral e espiritual do ser humano. Os bandidos da política serão lembrados como manchas sórdidas na arquitetura humana, dejetos, deformações. Um Hitler e um Stalin, por mais vitoriosos que tivessem sido por algum momento, são referenciais do que há de pior na vida humana. Assim será com os nossos políticos bandalhos, de todas as geografias, latitudes e longitudes, inclusive as mais provincianas.

Até no futebol, cronistas pedem o retorno do jogo alegre, da picardia, do coração de amador, como está acontecendo com os chamados “meninos da Vila”, garotos do Santos F.C. que fazem lembrar o que de mais belo e bom tivemos quando o mundo de Pelé era sinônimo de anos dourados. A vida é, também, um jogo, o mais complexo de todos e, por isso mesmo, o mais fascinante. Tem regras que definem convivências e outras que precisam ser superadas. Não jogamos sozinhos e, ao mesmo tempo, muito depende de nós mesmos. A soma das habilidades individuais configura a eficiência do coletivo, que pode ser o de um time de futebol, o de uma cidade, de um povo, de uma nação.

Fiquei ensimesmado quando meu primo querido falou de jogos de botões, o futebol de mesa ou num quadrado do chão. Pensei no meu Baltazar, no meu Gilmar, nos meus Cláudio e Luizinho, botões que ora ganhava de minha mãe, ora tirava de velhos casacões de parentes. E dou-me conta de que foi, aquele jogo, um exercício para viver num mundo com regras. Quando estas, as regras, acabaram, tudo se complicou. Bom dia.

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