Quando o mérito não tem importância

Em todos os cantos do Brasil, espocam protestos contra a corrupção política, altos salários de deputados, senadores, vereadores, funcionários especiais. Uma revista semanal chegou a fazer, como matéria principal e de capa, a pergunta: “Eles merecem ganhar tanto?” Em resumo, a revista pretendeu levantar a questão: qual o mérito para eles ganharem tanto?

O problema é que se não trata de mérito, de merecimento.Mérito é diferente de virtude e de valor moral. Trata-se de avaliação deles – do valor moral e da virtude – para, então, se produzir uma recompensa, uma aprovação. Mérito, pois, não diz respeito a pessoas. Elas ganham por algum mérito no que tiveram e produziram. O mérito de uma obra de arte está nela mesma. Na verdade, mérito é um titulo que se busca para receber aprovação, recompensa, prêmio. O autor recebe o mérito de sua obra meritória.

Logo, o mérito depende de uma escala de valores morais e na virtude que se avalia. Num tempo em que se fala de muitas éticas – até os bandidos têm ética própria – a noção de mérito também se dilui. Numa sociedade, por exemplo, que convive com ladrões e os aplaude, o mérito que se dá é à ladroagem. O cidadão virtuoso, nessa escala de avaliação, não tem mérito algum. É um desajustado, alguém “à gauche”.

Desgraçadamente, coisas, pessoas, atitudes, comportamentos, funções – os componentes quase todos de nossa vida em sociedade passaram a existir mais em função de preços do que de valores. Tudo, dizem, tem seu preço, não importa haja ou não valor. Assim, pessoas e consciências também recebem preços pelo que significam a cada grupo de interesses. No mundo do futebol, por exemplo, Neymar, por seu talento para a indústria do entretenimento, tem preço alto, dizem que cerca de 3,5 milhões mensais, montante que dá idéia dos lucros imensos que o futebol traz aos que o exploram. Numa universidade, o seu preço cairia ao rés do chão. Pois um professor, nesta mesma sociedade, tem pouco valor e, portanto, é baixo o preço que lhe pagam.

O preço dos homens públicos do Legislativo brasileiro começou a ser estabelecido pela ditadura militar, que fechou o Congresso, que pisoteou a constituição, que criou a sua própria ordem jurídica. Para inventar um simulacro de democracia – para efeito internacional – inventou dois partidos, criou eleições com cartas marcadas, produziu monstros jurídicos de senadores biônicos e prefeitos e governadores nomeados, além de o presidente ser apenas confirmado por um Congresso já corrompido. Foi nesse contexto que surgiram os grandes benefícios para o Poder Legislativo, que não tinha poder algum. Para compensar e enganar, vereadores de cidades pequenas passaram a receber subsídios, regalias. Deputados e senadores se tornaram privilegiados brasileiros em seus ganhos para fazer nada, pois não tinham, bem como os vereadores, autonomia alguma. Esses vícios de origem permaneceram na chamada e ainda falsa redemocratização. Afinal de contas, que grupo político é suficientemente idiota para ser decente num universo indecente? A noção de mérito acabou.

Não se pode, pois, falar-se em mérito ou em merecimento onde impera o vício, a desonestidade, a ilegitimidade. Por deturpação, nas quadrilhas de bandidos, fala-se em mérito daquele que for o mais eficaz e eficiente matador, ou o mais competente ladrão. Eles têm o reconhecimento dos demais bandidos. Na política brasileira, o mérito desapareceu, mas há, entre os partidos e os políticos, o reconhecimento do mérito de um Paulo Maluf ou de um Renan Calheiros para trapacear. Portanto, a revista, em meu entender, errou ao indagar se “eles merecem ganhar tanto”? Para os que ainda têm noção de virtude e de valor moral, a resposta é negativa, pois não há mérito algum no que acontece na vida política nacional. Entre os próprios políticos, porém, a resposta é positiva: “Merecemos, sim, pois fazemos muito bem o que fazemos.” Só que o povo já sabe o que eles fazem. E não aprova.

A pergunta da revista deveria ser outra: “eles valem o preço alto que pagamos?” A resposta surpreenderia. Pois se o preço não vale para o povo consciente e humilde, é um preço pago de bom grado pelo empresariado, empreiteiros, bancos, grupos de interesses. Para estes, o preço alto vale a pena. É a ética da desordem.

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